domingo, 8 de julho de 2007

A Grande Corrente

Os músculos, já exauridos de dor, continuavam a executar a prática renitente que impulsionava a canoa rio à cima de uma maneira preternatural, tanto que Francisco estranhou a própria força. Haviam sido seis horas de luta contra àquelas águas lânguidas, e o pescador já não podia distinguir seus braços dos remos que usava _ carne, ossos e madeira fundidos pelo desespero. O sol cada vez mais curvado no horizonte fazia o dia apagado, dando para a mata um aspecto tristonho, negro. Era como se a água, por efeito da luz rarefeita, fosse se transformando em óleo, empregando ao rio uma propriedade sempre mais opressora, cruel.
Trinta e cinco quilômetros separavam Francisco de seu destino final, e consigo levava o medicamento necessário para cuidar da crise de sua filha asmática. Mesmo que não tivesse conseguido trazer o médico e tão pouco algum enfermeiro da cidade, acreditava em seu triunfo, sabia que Cristina estava salva.

Socorro percorria os quatro cantos do posto médico, muito nervosa, a encarar indignada os funcionários incapacitados do lugar. Ao perceber a inutilidade de suas investidas, retornou para junto de seu irmão cardíaco, pois estar ao lado de Antonio, lhe segurar a mão e esperar a chegada da ambulância era o máximo que poderia.
A equipe do tele-jornal local, no posto, ocupava a mesma sala que Antonio, e na edição noturna do tal folhetim, o padecimento execrável daquele homem que implorava por oxigênio seria então jornalisticamente exibido em rede estadual.

Madalena ouvia o arfar estertoroso da pequena Cristina tornar-se cada vez mais tênue, notando que o intervalo entre uma inalação e outra ficava sempre maior. Ela rezava para que não fosse o derradeiro cada um dos pelejantes suspiros de sua filha. Agradecia muito a Deus por todas as vezes que o peitinho sôfrego da menina voltava a se avolumar com o pouco de ar que Cristina ainda era capaz de por para dentro de si _ tão cansada.
O escuro seguiu engolindo o vilarejo onde se esquecia do mundo a família de Francisco. No coração de Madalena a sensação de que, junto com a luz diurna, também se extinguiam as últimas forças da menina, derramou a primeira lágrima daquela noite, sentindo-se quase tão mortificada quanto a filha, que depois das seis horas já não abria mais os olhos, e que depois das sete já não respirava mais.

Socorro pediu para que a equipe de televisão abandonasse a enfermaria, assim, talvez, Antonio conseguisse respirar melhor _ que respeitassem o estado de seu irmão. Nos demais compartimentos do posto de saúde, o cinegrafista registrou a presença sólida de todo desamparo a dominar o local, e por entre uma das folhas abertas da porta da enfermaria acompanhou os últimos instantes de vida de Antonio, que já não gritava com falta de ar, que jazia estendido sobre a maca, não mais a compungir-se, que parecia descansar enfim.

Após doze horas de uma busca inválida, Francisco retornava ao seu ponto de partida para deparar-se com o pranto silente de sua esposa e o corpo macilento de sua filha sem vida. Sentiu um pouco de vergonha de si mesmo por não ter conseguido chorar, tamanha era a sua exaustão. Mas nem lhe era possível pensar, sentir. Apenas deixou-se cair na areia, muito fraco, muito só.