domingo, 30 de março de 2008

sábado, 29 de março de 2008

Dissertar de um sonho




Em outras ocasiões ele vinha, sempre em sua couraça negra e lustrosa, perfilando por meu caminho, voraz a se aferrar em meu punho, que eu levava ao rosto para protegê-lo de seu ataque impetuoso. Desta vez, o chacal dirigiu-se a mim de forma hipnótica e silente, porém, não menos ameaçadora e medonha, dispensando uma investida imediata contra minha carne, abordou-me traiçoeiro, na sua precipitação faminta e quente, dando-me a chance extraordinária de lhe deter pela coleira e manter sua mandíbula úmida incapaz de prensar os pedaços macilentos de meu corpo _ neste momento, embebido em medo e poder.
Entre a coleira e seu pescoço rijo, afundavam-se meus dedos, com os quais senti o calor de seus pelos macios e ouriçados, talvez pelo seu faro a reconhecer, dentro de meu suor, o aroma de meu amado e saboroso sangue. “Como uma superfície tão atraente e tenra como esta pode pertencer ao corpo de uma fera sanguinolenta?”_ pensava eu enquanto o guiava pela rua escura e erma, segurando sua cabeça forte com as duas mãos, dando os passos em “marcha ré” para evitar que meus olhos perdessem o contato com os seus, sem, até então, saber como livrar-me de seus iminentes beijos dilacerantes, os quais a forte lembrança, tão traumatizada, a memória de minha pele ainda mantinha.
Quase se assemelhava a uma dança, a cadência elaborada pelo embate de meu instinto de sobrevivência contra as tentativas incisivas do cão, que nos impulsionava ladeira a cima, rumo ao que presumi ser o ponto de minha salvação. E enquanto o vencia, não conseguia entender a diferença daquele encontro, pois em qualquer outra abordagem do tal cachorro, nunca fui capaz de defender-me daquela forma, muito menos constituir-me como um oponente detentor de certa vantagem no confronto. Poderia arriscar até que, naquele determinado momento, já poderia considerar-me à altura de meu atemorizante algoz, ou mesmo superior, mais forte.
Eu duvidava demasiadamente dessa nova força, tamanho era meu estranhamento diante dela. Não pude saber ao certo se o que lhe impedia de morder-me eram minhas mãos, sustentadas pelos meus músculos parcos, ou o negro de meus olhos, então decididos pela vida. Sei bem (e esta ciência ainda agora me assusta), no ínterim em que me confrontava com essa, outrora inimaginável, capacidade de controlar a fera, e me adaptava à minha nova condição de mestre, encerrei em mim toda a fúria do animal, devorando um tanto de sua paixão, cada vez que ele tentava, inutilmente, penetrar-me com seus dentes, infundindo-lhe uma mágica debilidade à medida que se rendia. Por minha culpa _ pensei _, seus bruscos movimentos de monstro transformaram-se em abalos espasmódicos de um corpo sem vontade. Na verdade, não posso afirmar se meu julgo foi responsável pela transfiguração do bicho, mas foi bem debaixo de minhas mãos e de meus olhos que tudo se deu exatamente assim.
Percebi bem concentrada minha superioridade sobre a fera, a ponto de me sentir à vontade para tirar-lhe uma das mãos _ já havia espaço para evoluir na tática_ e com ela buscar no chão um galho de árvore de uns trinta centímetros com o qual eu, no auge de minha vaidade, ou mesmo ingenuidade, através de um simples e, diria até, lúdico artifício, presumi livrar-me em fim de meu indesejado acompanhante. Algo me dizia para não simplesmente largar sua coleira e soltá-lo, eu não podia confiar, mesmo sentindo minha vitória como confirmada, precisava encontrar um meio de afastá-lo de mim para só então virar-lhe as costas e, tranquilamente, enfiar-me portão adentro (a essa altura já nos encontrávamos diante de minha casa). Prevenido por isso, decidi jogar pra longe o graveto, já na espera de ver o cão saltitar em direção ao destino que eu lhe definiria, tal como fazem os tipos mais domésticos. O caráter extraordinário de minha sorte não me assegurava por completo quanto ao desfecho daquele tétrico encontro, eu necessitava de maiores garantias, era imprescindível ter aquela criatura pavorosa um quanto mais longe; afastar o forte fantasma das feridas, da dilaceração e da agonia que qualquer movimento equivocado poderia me causar.
O cachorro mantinha seu olhar fixo sobre mim, empenhado que estava em ludibriá-lo com a estratégia do galho. Eu ainda não cria na sua inércia. “Por que não me ataca?” Agora não estava mais rigorosamente obstruído, ele poderia pular sobre meu pescoço, então, amplamente vulnerável. Cheguei mesmo a esperar por sua abocanhada, mas ele permanecia estático, dando-me a incrível chance de gerir meus planos de libertação.
Balancei o graveto bem perto de suas fuças, mas o cão parecia não se interessar por aquela movimentação. Sua resposta indiferente me causou uma sensação muito ruim, idiotizante. Vislumbrei, assim, meu fracasso e até fui capaz de ouvir os gritos que eu daria quando ele começasse a mastigar-me ininterruptamente. Minha garganta travou como que atravessada por um punhal e do meu olho esquerdo brotou uma lágrima densa e ardente. Soltei a outra mão da coleira do cão, e, mais por desespero do que por esperança, com muita força, atirei o galho para a outra extremidade da rua. O chacal, para o meu terror, continuou em minha frente, sem mover polegada, assim por uns cincos segundos, até quando disparou de súbito para o sentido em que eu arremessara o meu graveto da sorte.
Em meu peito experimentei um misto de alívio e surpresa e, paralisado pela maravilha do instante, contemplei a corrida nervosa do cachorro, que avançava intrépido para o destino que eu lhe apontava. No meu plano de salvação, porém, eu não previa que no mesmo lugar para onde eu mandava aquele animal perverso, existia uma criança desprotegida, só então descoberta por mim, solitária a rebentar pela esquina.
O chacal não se desfez de minha companhia em caça daquele estúpido graveto seco. Mais uma vez cheio de paixão, ele avançava ruma ao tal determinado ponto para violentar aquele ser, que por sua silhueta parecia se tratar de um menino por volta de seus oito anos.
Novamente descobri-me impotente e terrivelmente miserável ao contemplar a cupidez atroz do chacal sobre o pequenino; e cheio de vergonha e medo imensuráveis fugi. Tão inepto eu seria para salvar a criança das presas do cão malvado. Enterrei-me nas trevas do pátio de minha casa e muito forçosamente destranquei o gradeado com folhas de vidro, que cerrei logo de súbito à minha entrada. O interior da casa à prova de som me pos a salvo dos gritos do menino _ pra mim, imensamente mais insuportáveis que a dor infligida pelas mordidas do cachorro negro.