sábado, 3 de dezembro de 2011

Atenção para “A Revolução dos Cocos”!

Marshal Sahlins defende a ideia de que as populações tradicionais, diferente do que professou o pessimismo sentimental dos antropólogos do início do século XX, não estão fadadas à extinção. No seu pensamento, esses grupos humanos e suas configurações pré-capitalistas muito ainda têm o que mostrar para o mundo ocidental. Uma confirmação categórica desta teoria é o caso da guerra civil de Bougainville, muito bem retratada no documentário participante A revolução do coco (The Coconut Revolution, National Geografic, 1999). Esse filme, cuja projeção mundial, no meu ponto de vista, está muito aquém do necessário – até o início desta semana, eu não tinha nunca, sequer, ouvido falar nessa obra – traz à tona, de maneira muito louvável, detalhes da organização social dos nativos da ilha de Bougainville, após o embargo econômico que essa comunidade sofreu por parte do governo de Papua Nova Guiné.

Antes de versar mais propriamente sobre minhas reflexões relativas ao filme, creio ser útil uma breve contextualização espaço-histórica da realidade vivida pela ilha de Bougainville. Esta ilha situa-se no Pacífico, no arquipélago Ilhas Salomão, e no momento em que o filme foi produzido, estava sob domínio político de Papua Nova Guiné. Tal como todas as terras do “Novo Mundo”, a região onde localiza-se Bougainville também sofreu com as intempéries da colonização de caráter exploratório desempenhada pelas potências marítimas europeias. Ao longo de sua história moderna, Bougainville, a porção maior de terras emersas das Ilhas Salomão, foi alvo das investidas imperialistas do Reino Unido, da França, da Alemanha e, durante a Segunda Guerra Mundial, do Japão, até que, nos anos de 1970, foi anexada à Papua Nova Guiné. Nessas condições, desde seu primeiro contato com a “civilização”, essa ilha foi sucessivamente submetida a governos de orientação liberal, que lhe impuseram regimes socioeconômicos determinados pelos ditames de um mercado fundamentado na exploração e espoliação de seus recursos naturais. Essa degradação da dimensão natural de Bougainville resultou, de forma muito direta, numa profunda perturbação das condições socioculturais de existência da população local.

O período histórico sobre o qual o documentário se debruça mais detalhadamente são meados do anos 1980, quando na ilha operava a empresa de mineração inglesa Rio Tinto Zinc, a maior do mundo em seu segmento. Os impactos da exploração dessa empresa sobre a ilha foram intensos: além das profundas mudanças na estrutura do solo, a atividade incorreu sobre o lançamento de substancias tóxicas nos recursos hídricos, provocando a morte de um dos principais rios locais. (A fotografia da paisagem impressiona ao denunciar as pegadas do empreendimento inglês sobre a superfície de Bouganiville: grandes crateras que se conformam dramáticas no horizonte da floresta degradada). Todas essas alterações drásticas no ecossistema de Bougainville foram percebidas pela população nativa a qual, diante de tal injustiça, organizou um levante que expulsou a Rio Tinto da ilha e acabou por situá-la numa posição extremamente desfavorável junto ao governo de Papua Nova Guiné – este em resposta ao movimento insurgente, e apoiado pelas forças armadas australianas, projetou seu exército de forma incisiva sobre os revoltosos de Bougainville. A Guerra Civil instaurada produziu a morte de 15 mil de nativos, a depredação das comunidades locais e o embargo econômico de Papua Nova Guiné contra a ilha de Bougainville. A partir de então, a população local não seria mais assistida pelo governo e, portanto, nessa circunstancia, passaria então a viver sem suprimentos, sem energia e sem contato com o mundo exterior.

“A revolução dos cocos” se constitui sobre um formato quase etnográfico, apoiando seu enredo no depoimento dos nativos que testemunharam a guerra Civil de 1990. As figuras principais na narrativa são Ishmael, o então comandante das forças armadas locais e Francis Ona, o líder da revolução. Ishmael é o típico jovem forte e guerreiro, fisicamente marcado pela guerra. Apesar de muito arredio nas primeiras investidas da produção do filme, revela detalhes do treinamento militar enquanto conta a história de suas cicatrizes pelo corpo. É ele quem conduz a equipe do documentário a Francis Ona. Este, por sua vez, a despeito do mito em sua volta, conjeturas que o descrevem como impetuoso e severo líder revolucionário, ostenta a figura de um velho e doce agricultor familiar, preocupado com a manutenção de seu roçado. Elementos que sugerem o poder legítimo desse homem simples e gentil são dispostos no filme quando Ona é captado na prática de suas atividades multifacetadas na ilha: durante a época das filmagens, ele acumulava as funções de líder político, autoridade religiosa e curandeiro.

A resistência do povo de Bougainvillhe, corroborada pela postura fabulosa dessa gente em relação às investidas do exército de Papua Nova Guné – os nativos lutaram em defesa de sua ilha com pedras, paus e flechas contra metralhadoras e mísseis - só perde para o sua capacidade de criar e sobreviver meio a mais abjeta das crises. O embargo econômico obrigou os habitantes de Bougainville a buscar alternativas de desenvolvimento que foram encontradas, em sua maior parte, no uso inteligente dos recursos naturais. A falta de alimentos foi suprida pela alta fertilidade dos solos bougainvillenses, tendo sido possível o desempenho de uma agricultura orgânica e bem diversificada no local. “É impossível passar fome em Bougainville” (trecho do depoimento de um dos agricultores da ilha). A ausência de serviços de saúde foi parcialmente resolvida através das práticas tradicionais de fitoterapia e uso de plantas medicinais. A energia elétrica foi produzida a partir do potencial hídrico, com a construção de pequenas hidrelétricas. E o combustível que dá movimento aos poucos carros do local é extraído do coco, uma das frutas mais abundantes em Bougainville. O coco, além de combustível e alimento, é também usado com finalidade medicinal.

Ante ao fenômeno de Bougainville, a história não possui apenas o registro de mais uma entre tantas guerras civis ocorridas em função das contradições geradas pelos modelos políticos e socioeconômicos predominantes no mundo moderno. Nesse caso concreto, está muito bem representada também uma revolução de caráter ecológico. Bougainville mostra que é possível a convivência harmoniosa do homem com a natureza. Mais sério do que isso ainda, essa revolução demonstra a exequibilidade de um modelo econômico autônomo e alternativo no mais amplo sentido do termo. Vale ressaltar que a superação de Bougainville se processou no tempo em que a ilha estava isolada do resto do mundo e não desempenhava qualquer relação com o sistema econômico mundial.

A maneira extraordinária como a população de Bougainville libertou-se da opressão neoliberal, na ilha concretizada pela atividade da Rio Tinto, e resolveu o problema do embargo econômico faz com que minha ideia dialogue, tal como assim se expressa no início deste texto, com o pensamento de Sahlins. Isto devido o caso Bougainville ser capaz de exemplificar a teoria desse autor: nós, enquanto mundo ocidental, enquanto filhos da modernidade estabelecemos uma compreensão etnocêntrica da realidade havida entre os povos tradicionais, fato que nos leva a subestimar a capacidade de auto-gestão desses grupos. Nessas condições, não somos capazes de admitir a força dessas minorias sociais e deixamos passar as lições fundamentais que o “olhar do nativo” pode transmitir ao “homem civilizado”. Não quero aqui, muito menos, defender uma lógica binária acerca da dicotomia modernidade/tradição. Sei que o tratamento de fenômenos tais deve se dar por meio de uma hermenêutica diatópica, tal como sugere Boaventura. Nessa perspectiva, não há culturas mais, ou culturas menos. Há, nada obstante, a possibilidade de se extrair o que há de melhor em cada uma delas. A superação de Bougainville só foi possível por que seu povo havia já se apoderado de certos códigos modernos, chegados a ele mediante sua relação histórica com o mundo externo, técnica e cientificamente desenvolvido.

A ideia que defendo nesta minha publicação é: faz-se necessário um olhar mais cuidadoso sobre casos quais esse de Bougainville. A própria situação nesta ilha carece de estudos mais profundos, de uma projeção maior. O documentário explora ainda elementos curiosíssimos, como motivação religiosa e educação bélica, os quais seriam impossíveis de se esgotar num documento como este. É evidente que ali está um terreno fértil para as mais variadas formas de abordagem científica. Triste é saber que tão pouco foi divulgada essa revolução e que apenas em ambientes muito herméticos ela é discutida e analisada. Quem sabe na análise de fenômenos assim não seja possível, ao menos, sugerir um modelo ideal para o desenvolvimento da sociedade contemporânea – esta onde os limites entre moderno e tradicional, entre individual e coletivo, entre ideologia e matéria são tão fluidos. Esta sociedade que antes de classificar e dividir deve ter a percepção, assim como a teve o povo de Bougainville, de quão absurdas são algumas de suas estruturas internas e de quão abjetas são todas as formas de opressão.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Melancholia


Eu estou para a vida tal como Michael (Alexander Skasgard) está para Justine (Kirsten Dunst), sua noiva fugidia no filme de Lars Von Tries, Melancholia (2011). Isso mesmo, começo esta redação na primeira pessoa, pois minha intenção não é ser objetivo, muito menos impessoal. Eu quero aqui expressar minas impressões acerca do filme, assim como demonstrar a maneira que me senti de alguma forma refletido nessa produção.

Como eu dizia: eu sou Michael. Projetando-me, resignado sobre a beleza arrebatadora e enigmática da vida, a minha nubente bela e triste, Justine. Estou lá, ansioso para ser seu cúmplice, para confirmar nossas núpcias e cobrar suas promessas de amor eterno. Ela sorri, mas não consegue esconder sua dor, me escapa e vaga etérea no seu próprio mundo. Seu transe impermeável revela-me, em tom quase cruel, porém não menos bonito, que estamos todos completamente sós.

Justine olha-me e parece ter compaixão, mas não é capaz de suscitar esperanças de que um dia eu poderei penetrá-la. Mantém-se longínqua e abstrata, na medida em que decompõe minhas ilusões e me informa, doce e materna, quão patéticas são minhas intenções.

Eu a vejo absorta no seu balé insano e colho dela os seus significados messiânicos. “Deixa-me dançar contigo, Justine?”. Propalo essa súplica ao espaço vazio que nos separa. Não sei se ela ouve. Percebo-lhe, porém, inabalável a seguir na sua valsa solitária, distanciando-se cada vez mais e mais de mim.

domingo, 30 de março de 2008

sábado, 29 de março de 2008

Dissertar de um sonho




Em outras ocasiões ele vinha, sempre em sua couraça negra e lustrosa, perfilando por meu caminho, voraz a se aferrar em meu punho, que eu levava ao rosto para protegê-lo de seu ataque impetuoso. Desta vez, o chacal dirigiu-se a mim de forma hipnótica e silente, porém, não menos ameaçadora e medonha, dispensando uma investida imediata contra minha carne, abordou-me traiçoeiro, na sua precipitação faminta e quente, dando-me a chance extraordinária de lhe deter pela coleira e manter sua mandíbula úmida incapaz de prensar os pedaços macilentos de meu corpo _ neste momento, embebido em medo e poder.
Entre a coleira e seu pescoço rijo, afundavam-se meus dedos, com os quais senti o calor de seus pelos macios e ouriçados, talvez pelo seu faro a reconhecer, dentro de meu suor, o aroma de meu amado e saboroso sangue. “Como uma superfície tão atraente e tenra como esta pode pertencer ao corpo de uma fera sanguinolenta?”_ pensava eu enquanto o guiava pela rua escura e erma, segurando sua cabeça forte com as duas mãos, dando os passos em “marcha ré” para evitar que meus olhos perdessem o contato com os seus, sem, até então, saber como livrar-me de seus iminentes beijos dilacerantes, os quais a forte lembrança, tão traumatizada, a memória de minha pele ainda mantinha.
Quase se assemelhava a uma dança, a cadência elaborada pelo embate de meu instinto de sobrevivência contra as tentativas incisivas do cão, que nos impulsionava ladeira a cima, rumo ao que presumi ser o ponto de minha salvação. E enquanto o vencia, não conseguia entender a diferença daquele encontro, pois em qualquer outra abordagem do tal cachorro, nunca fui capaz de defender-me daquela forma, muito menos constituir-me como um oponente detentor de certa vantagem no confronto. Poderia arriscar até que, naquele determinado momento, já poderia considerar-me à altura de meu atemorizante algoz, ou mesmo superior, mais forte.
Eu duvidava demasiadamente dessa nova força, tamanho era meu estranhamento diante dela. Não pude saber ao certo se o que lhe impedia de morder-me eram minhas mãos, sustentadas pelos meus músculos parcos, ou o negro de meus olhos, então decididos pela vida. Sei bem (e esta ciência ainda agora me assusta), no ínterim em que me confrontava com essa, outrora inimaginável, capacidade de controlar a fera, e me adaptava à minha nova condição de mestre, encerrei em mim toda a fúria do animal, devorando um tanto de sua paixão, cada vez que ele tentava, inutilmente, penetrar-me com seus dentes, infundindo-lhe uma mágica debilidade à medida que se rendia. Por minha culpa _ pensei _, seus bruscos movimentos de monstro transformaram-se em abalos espasmódicos de um corpo sem vontade. Na verdade, não posso afirmar se meu julgo foi responsável pela transfiguração do bicho, mas foi bem debaixo de minhas mãos e de meus olhos que tudo se deu exatamente assim.
Percebi bem concentrada minha superioridade sobre a fera, a ponto de me sentir à vontade para tirar-lhe uma das mãos _ já havia espaço para evoluir na tática_ e com ela buscar no chão um galho de árvore de uns trinta centímetros com o qual eu, no auge de minha vaidade, ou mesmo ingenuidade, através de um simples e, diria até, lúdico artifício, presumi livrar-me em fim de meu indesejado acompanhante. Algo me dizia para não simplesmente largar sua coleira e soltá-lo, eu não podia confiar, mesmo sentindo minha vitória como confirmada, precisava encontrar um meio de afastá-lo de mim para só então virar-lhe as costas e, tranquilamente, enfiar-me portão adentro (a essa altura já nos encontrávamos diante de minha casa). Prevenido por isso, decidi jogar pra longe o graveto, já na espera de ver o cão saltitar em direção ao destino que eu lhe definiria, tal como fazem os tipos mais domésticos. O caráter extraordinário de minha sorte não me assegurava por completo quanto ao desfecho daquele tétrico encontro, eu necessitava de maiores garantias, era imprescindível ter aquela criatura pavorosa um quanto mais longe; afastar o forte fantasma das feridas, da dilaceração e da agonia que qualquer movimento equivocado poderia me causar.
O cachorro mantinha seu olhar fixo sobre mim, empenhado que estava em ludibriá-lo com a estratégia do galho. Eu ainda não cria na sua inércia. “Por que não me ataca?” Agora não estava mais rigorosamente obstruído, ele poderia pular sobre meu pescoço, então, amplamente vulnerável. Cheguei mesmo a esperar por sua abocanhada, mas ele permanecia estático, dando-me a incrível chance de gerir meus planos de libertação.
Balancei o graveto bem perto de suas fuças, mas o cão parecia não se interessar por aquela movimentação. Sua resposta indiferente me causou uma sensação muito ruim, idiotizante. Vislumbrei, assim, meu fracasso e até fui capaz de ouvir os gritos que eu daria quando ele começasse a mastigar-me ininterruptamente. Minha garganta travou como que atravessada por um punhal e do meu olho esquerdo brotou uma lágrima densa e ardente. Soltei a outra mão da coleira do cão, e, mais por desespero do que por esperança, com muita força, atirei o galho para a outra extremidade da rua. O chacal, para o meu terror, continuou em minha frente, sem mover polegada, assim por uns cincos segundos, até quando disparou de súbito para o sentido em que eu arremessara o meu graveto da sorte.
Em meu peito experimentei um misto de alívio e surpresa e, paralisado pela maravilha do instante, contemplei a corrida nervosa do cachorro, que avançava intrépido para o destino que eu lhe apontava. No meu plano de salvação, porém, eu não previa que no mesmo lugar para onde eu mandava aquele animal perverso, existia uma criança desprotegida, só então descoberta por mim, solitária a rebentar pela esquina.
O chacal não se desfez de minha companhia em caça daquele estúpido graveto seco. Mais uma vez cheio de paixão, ele avançava ruma ao tal determinado ponto para violentar aquele ser, que por sua silhueta parecia se tratar de um menino por volta de seus oito anos.
Novamente descobri-me impotente e terrivelmente miserável ao contemplar a cupidez atroz do chacal sobre o pequenino; e cheio de vergonha e medo imensuráveis fugi. Tão inepto eu seria para salvar a criança das presas do cão malvado. Enterrei-me nas trevas do pátio de minha casa e muito forçosamente destranquei o gradeado com folhas de vidro, que cerrei logo de súbito à minha entrada. O interior da casa à prova de som me pos a salvo dos gritos do menino _ pra mim, imensamente mais insuportáveis que a dor infligida pelas mordidas do cachorro negro.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Parafresando Eduardo Peret na prova do ENEM




Apresento agora um texto que elaborei para a redação do ENEM, que tinha como tema “Os desafios de conviver com as diferenças”. Como vocês poderão ver, não me preocupei em apresentar alternativas para a harmonização dos relacionamentos humanos, pois a mim não se imputa tal obrigação, tentei mesmo expor como reconheço as verdades concernentes às tentativas falhas da promoção dessa ordenação. Eduard Peret está no título desta postagem por que foi através de uma idéia já apresentada por ele que desenvolvi meus argumentos seguintes:

Diferente nulo

“Amar o próximo como a si mesmo” é um, senão o maior dos princípios cristãos mais difundidos meio a civilização ocidental, e este ideal é base para uma diretriz padrão que tenta se aplicar como modelo para a promoção da convivência harmônica, não só entre os integrantes do séqüito do Novo Testamento, mas, também, em quase todos os grupos humanos existentes sobre a face da Terra. Em todas as civilizações contemporâneas, seus membros são ensinados, e, por que não dizer, adestrados por uma educação lapidante que incuti uma espécie de altruísmo ascético em suas vidas, e é através desses moldes civilizatórios que o homem, ser originalmente selvagem, é levado a temer o preço de suas atitudes_ temer o castigo pela concretização de seus instintos. Ou seja, o ser humano civilizado é resultado de um processo laborioso de refinamento, e está inserido em um mundo que o obriga a creditar no dever de amar o próximo com a si mesmo, quando na verdade, em sua natureza, tudo o que mais lhe importa é a perpetuação de sua própria existência, mesmo que esta ocorra em função da destruição dos humanos que lhe rodeiam. É exatamente pelo fato do homem ansiar por sua auto-afirmação que se torna tão difícil, e em muitos casos até impossível, para ele conviver com a diferença. Em todas as relações com o externo, o homem busca pelo reflexo de sua própria imagem, desta forma, todos os elementos em desacordo com suas projeções são ignorados/ desprezados.
A uniformização/ massificação de miríades e miríades da espécie humana é uma grande façanha dos preceitos judaico-cristãos, e este fenômeno não faz com que os humanos sejam mais tolerantes uns com os outros, pelo contrário: os grupos sociais são constituídos dentro de unidades doentias, e para seus integrantes, presos em uma completude ilusória, *a regra de fato nunca foi aceitar e amar as diferenças do próximo, mas sim, a qualquer custo, torná-lo igual a eles, e, só depois disso, amá-lo então*.


* Paráfrase de Peret com a qual introduzo e concluo o texto. Fiz uso de um argumento, já antes tão bem explorado pelo Edu, para dar uma outra direção ás idéias consoantes com a proposta do teste. Os textos maravilhosos desse cara podem ser encontrados aqui : http://ocabideiro.blogspot.com/2007_08_01_archive.html
A imagem da postagem é trabalho de David LaChapelle. Chic, né?

Nana e a filosofia

http://www.youtube.com/watch?v=co-c5gPWfiM

"... existe um tipo de devoção que impede uma pessoa de falar bem, até alguém ver a vida com desinteresse."

Vivre sa vie: uma incursão




“Paul: __ Você não fala de outro assunto que não seja sobre si mesma.
Nana: __ Você é horrível.
Paul: __ Não sou horrível. Estou triste.
Nana: __ Não estou triste, Paul. Eu sou horrível.”


Esta é parte do diálogo que dá início ao desenvolvimento de “Viver a vida”, um filme que, a partir de então, leva o expectador a acompanhar o declínio patético de Nana, uma atriz aspirante que decide deixar-se guiar pelo sonho de viver através da arte, ao trocar o ordinário seio familiar pelas ruas insinuantes e frias de Paris. A conversa transcrita a cima acontece numa cafeteria, onde Nana, muito fleumática, entre cigarros, moedas e uma partida no fliperama, corrobora o fim de seu casamento com Paul _ uma separação que a moça atribui ao fato de seu marido, nela, não enxergar nada além do comum.
Para Paul todos os seres humanos são iguais, e justamente esta idéia, Nana não pode suportar: “Como seria possível amar alguém e não considerá-lo especial, extraordinário?” Mesmo levando em conta a segurança do casamento, como continuar a viver com um homem tão diferente dela, que, em função disso, já não amava mais? Através do rompimento, Nana pensa fazer a coisa certa _ “Eu quis ser muito correta”_, agindo com sinceridade em relação a si mesma, sendo auto-afirmativa, pondo fim na barganha de sua alma, antes constantemente oprimida pelo conforto desesperador do matrimônio. E assim, com os olhos embebidos em lasso, ela se depara com as dificuldades tremendas, _ o que sempre se encontra quando se decide desafiar as forças do mundo objetivo _, ao se ver sem dinheiro e completamente só, ladeada apenas por um sonho_ uma presença incapaz de lhe dar calor, pagar a conta de seu aluguel e comprar sua comida. A audácia na tentativa de reaver sua alma, como conseqüência, lhe traz muitas privações, e acaba por obrigá-la a vender o próprio corpo.
Os objetivos que levam Nana a fechar-se para Paul como mulher, são os mesmos que a forçam, como prostituta, a abrir-se para uma miríade de homens desconhecidos nas ruas parisienses. Mesmo com isso, ela se mostra sempre consciente, autoproclamando-se senhora da própria vida: “Se ergo minha mão, eu sou responsável. Se viro minha cabeça, eu sou responsável. Se estou infeliz, eu sou responsável...”. Acredita na possibilidade de produzir a diferença, tal como o fez o marido de Rebeca, uma de suas colegas prostitutas, o qual, após abandonar mulher e filhos, fez carreira como ator de cinema nos Estados Unidos. Exemplo no mínimo motivador para Nana, mesmo pela semelhança com a sua história, que, talvez, entre outras poucas e, até mesmo, incompreensíveis causas, ainda a mantinha firme em sua caminhada sofista pelas ruelas cinzentas de sua realidade inóspita.
Muito embora a personagem central de “Viver a vida” tenha fé no poder de comandar seus atos e administrar as conseqüências destes, o filme demonstra justamente o oposto: Godard realizou um trabalho belíssimo, de ótica muito crua e naturalista, expondo como o ser humano pode chegar a ser passivo e apaticamente permissivo em situações de extrema subjugação, como no caso de Nana _ uma folha morta sendo arrastada pelo vento do outono _, que segue perdendo sua humanidade à medida que é inserida em um contexto social abjeto, através do qual se transforma em um produto com preço estipulado em cifras exatas, com tempo de vida útil e tudo mais.
Quando Nana é reanimada pela chance de um novo amor, é demasiado tarde. O processo de coisificação de sua pessoa já havia retirado-lhe algumas das mais importantes faculdades humanas, entre elas a vontade e o direito de controlar os próprios passos. E à mercê de uma corrente externa, tão alheia aos seus sentimentos e sonhos, ela é estupidamente transportada para morte. Promovido assim o fim de uma vida curta e sem glória.
Em “Viver a vida” presencia-se a busca incessante de um ideal, que se dá em detrimento da existência. Como o que ocorre com o Pintor d”O retrato oval” (personagem do conto de Edgar Alan Poe, genialmente inserido no filme), que, tão obcecado por sua criação, é dominado pela compulsão e, no anelo de reproduzir o milagre da vida, obtém tão somente a consumação da morte. Exatamente o que acontece com Nana.
“Nana: __ Escapar é um sonho impossível.
Rebeca: __ Por quê?
Nana: __ É a vida.”