segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Na porta de Miguel



Foram apenas dez minutos de pedaladas até a casa de Miguel, o suficiente para me por quase morto, a gotejar por todos os poros um suor muito pegajoso, que se derramava quente por minha pele suplicante. Bati palmas diante do portão cerrado, esforçando-me para que soassem tranqüilas, mas o latejar do meu cérebro e a pulsação nervosa do meu peito impediram-me de constatar se meu fingimento havia obtido o resultado esperado _ eu era pouco capaz de ouvir meus próprios pensamentos. Pus-me a andar de um extremo ao outro entre os limites da mureta da casa, a fim de perscrutar algum movimento interno, até quando consegui captar as vozes masculinas que habitavam dentro daquelas paredes. Eu reconheci a voz vibrante e substancial de Miguel _ a mim era quase possível apalpar cada uma das palavras emitidas por ele. Seu fraseado aberto e vívido cobria a fala inexpressiva de seu interlocutor.
No mesmo instante que o vi surgir pela porta lateral desviei minha vista para um ponto qualquer da rua, evitando descobrir na expressão do rosto de Miguel a forma como ele se sentia em relação a minha visita inesperada. Não apertamos as mãos. Passei a mensagem que lhe devia _ que por seu caráter irrelevante aos fatos que narro não se faz necessária expor aqui _ , transmitindo tudo sem sorrir, sem olhar nos seus olhos.
Miguel comentou achar estranho me ver de bicicleta, que eu estava ofegante e ensopado de suor, se não queria alguma água. Eu aceitei, e muito precipitado me insinuei em direção da casa enquanto ele se virava para buscar a água. Perguntei se haveria problema em deixar a bicicleta ali fora, ao que Miguel respondeu não saber, falando de uma forma desconexa, sem vontade. “Acho melhor...”. E não disse que eu podia pô-la para dentro. Talvez mesmo pelo convite tímido de Miguel eu apenas mudei a posição da bicicleta alguns centímetros, de uma forma que eu pudesse visualizá-la quando estivesse mais adentro, no pátio.
Com meus passos morosos, meus olhos no chão e a camiseta grudada ao meu dorso magro, eu já me distanciava da porta por onde Miguel, silencioso, havia entrado na casa, no momento em que ele reapareceu com o litro cheio de água e o copo a me servir. E foi quando eu voltava a lhe conferir detalhes de alguma eventualidade corriqueira, que vi emergir das sombras da cozinha os olhos felinos de Humberto a se deitarem gélidos por sobre mim. Seu olhar soturno sobrevoava as linhas duras de sua boca que, aliada a um sorriso maquinal, expelia para mim o “olá” mais pálido que eu já ouvi nesta vida. Respondi ao cumprimento muito cordial, pois dessa forma procedo sempre; fingi não ter percebido as fuziladas de Humberto _ muito embora por dentro as sentisse dilacerantes _, e voltei-me exclusivamente para Miguel a fim de concluir aquela conversa vazia, cujo curso e a continuidade já me eram questão de honra.
A aparição “triunfante” de Humberto não durou mais que alguns segundos, e essa atitude corroborava minha opinião: aquele rapaz não suportaria a imposição de minha presença por mais que aquilo. Mas dessa vez, devo admitir, tivera forças o bastante para chegar até a porta e, quase jactancioso, exibir-se pra mim do alto de sua posição soberana. Lembrei-me de certa vez quando, dentro de uma camiseta regata, o encontrei muito garboso a exibir seus braços e ombros trigueiros no passeio público ao lado de um colega seu da musculação. Recordei-me de como pisava forme, de como incidia radiante entre os transeuntes, ereto, ufano. Lembrei-me também da palidez de seu rosto e a secura de seus olhos quando percebeu que, de dentro de um barzinho, eu o observava, muito contemplativo e frio, quase como o faria um cientista diante do objeto de estudo. Revivi na mente aquele momento no qual Humberto hesitava assustado diante de minha análise invasora, eu podia revê-lo ultrajado e olhando em volta a suplicar o socorro que não viria de lugar nenhum; vacilando, perdendo-se debaixo do meu olhar inumano.
Foi devido a essa lembrança a minha conclusão de que aquela tática incisiva e lacônica de Humberto era de fato parte da execução de sua vingança contra mim. Um golpe que, em despeito da rapidez com que fora aplicado, extraia muito das minhas forças, fazia-me vergonhosamente derrotado.
A minha sede se dissipara e não havia bebido nem metade da água que estava no copo, mas para não demonstrar nenhum tipo de abalo continuei, diante de Miguel, a sorver aquelas quantidades insalubres de agonia, dando prosseguimento a minha imperturbável “mise en scene” de moço polido, equilibrado e gentil.
Despedimo-nos enfim, e tal como na minha chegada, o fizemos sem nos tocarmos _ talvez o toque fosse um grande erro, ou talvez por mim ele não fosse justo.

2 comentários:

Unknown disse...

Excelente descrição.
Seu personagem transpira angústia e pessimismo.
Spleen...

Um forte abraço.

Eduardo Peret disse...

Poético! Uma narrativa não linear e cheia de elementos emocionais, capaz de levantar mais dúvidas do que as suas próprias afirmações. Excelente, rapaz!